Descobre-te, eu não quero ser o fundo dos teus olhos,
destapa-te, tens que chegar-te para onde a frescura
nocturna está deitada nos lençóis,
afasta-te, não de mim, do meu sono,
aperta-me contra o teu peito, acorda-me de noite
com beijos e ternura, foi o que sempre quis,
apenas o carinho que nunca tive, a atenção que realmente
mereço, poderá talvez ser nenhuma, mas será toda
aquela que me puderes dar. Tu chegas sempre primeiro
depois do sol, eu chego sempre tarde às horas de luz,
e nunca nos encontramos pelas seis da tarde num dia
de verão.
"Tudo era claro, jovem, alado. O mar estava perto. Puríssimo. Doirado." - Eugénio de Andrade
29 abril 2008
nocturno
26 abril 2008
Não (me) importa(r)
1 Eu não me importo de olhar fundo nos olhos de quem gosto.
2 Eu não me importo que me enganem porque não o conseguem.
3 Eu não me importo de não falar, de não dizer, de nos enterrar em silêncio.
4 Eu não me importo de dar sem ter nada em troca - sempre o fiz.
5 Eu não me importo de escrever aqui, porque ninguém me conhece.
6 Eu não me importo de existir, porque isto tem muita piada.
De maneira que tem toda a importância dizer "não me importo". Usa-se a negativa para afirmar a importância do que quer que seja. O mesmo é dizer que o não exercício de um direito é já uma forma de o exercer, pelo que não se extingue. Através do "não me importo" como que perpetuamos as coisas...
Regras
- dizer seis coisas que não se importe de ter ou fazer.
- colocar o link da pessoa que o "mimou".
- colocar as regras no blogue.
- desafiar seis pessoas colocando um comentário nos seus blogues.
Desafio:
Morada Terra
O Melhor Amigo
25 abril 2008
Porque vale a pena...
José Mário Branco - Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Mas se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas
qu'inda o dia é uma criança.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
Mas se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas
qu'inda o dia é uma criança.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
Mas se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas
qu'inda o dia é uma criança.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.
Mas se todo o mundo é composto de mudança
troquemos-lhe as voltas
qu'inda o dia é uma criança.
Para que nunca mais...
21 abril 2008
17 abril 2008
5-3
Retomamos a nossa emissão dentro de momentos.
Resíduos do corpo
o rumor
de arderem altas;
ficam as águas,
à tona
a clara sombra
onde pousaram lábios;
fica o outono,
desatado beijo a beijo
sobre a palha;
ficam as nuvens,
a sede ainda
de um ramo de coral.
Eugénio de Andrade, em "Obscuro Domínio"
14 abril 2008
12 abril 2008
Até amanhã
Disse ele, Até amanhã, e tamanhas palavras, assim ditas, tiveram o efeito de um grande terramoto, nos instantes seguintes dir-se-ia que as pedras escuras do castelo desabavam inteiras e todo aquele lugar era arrastado para um outro onde as paredes ruíram e jazem inertes ao nível do chão num monte de cimento picado, mas esta casa não desabou, o telhado continua direito, no mesmo ângulo em que foi construído para escoar as águas e proteger dos raios homicidas do sol forte de Julho, os alicerces não foram perturbados, muito ou pouco fundos lá permanecem, se sequer existem, as raquíticas paredes vagamente brancas, escurecidas pela humidade aí estão para quem as quiser ver, por fora com menos saúde, por dentro melhores, É fazer o favor quem quiser entrar, nós o que fazemos é muito simples, subimos as escadas muito depressa, ele à frente, puxando-me pela mão, eu atrás subindo um pouco a saia, antecipando talvez o que o desejo dificilmente deixa esconder, ou ajudando as pernas a depressa completarem os esforço dos degraus, saltamos o patamar, que todo o tempo é precioso, tropeçamos um no outro, a descoordenação é total, as pernas quase se cruzam, mas no fundo não importa porque mais tarde estaremos tão perto um do outro que a distância mínima que está entre nós agora parecerá um enorme rio que separa duas margens, o patamar ficou para trás, pequeno e sombrio, faltam poucas escadas, a porta já a vemos, as chaves estão nos bolsos, em qualquer deles podem estar, são poucos, são muitos, não sabemos, são agora apenas bolsos que guardam as chaves que são absolutamente necessárias para abrir a porta, não nos passaria pela cabeça, apesar de a respiração ir tomando conta dos pulmões, deitar abaixo a estúpida da porta que nas ombreiras se apoia para não nos deixar passar, e no entanto tudo é possível agora, somos capazes de destruir paredes como se os beijos que entretanto imaginámos fossem marretas e picaretas, felizmente a porta abriu-se facilmente, resta o corredor estreito onde a luz da tarde vem descansar os cabelos, aqui não pode ser, para o que queremos temos o quarto, uma cama com quatro pés e um colchão e lençóis e duas almofadas, será já demasiado para que dois amantes se amem e se destruam com língua e beijos, finalmente chegamos ao quarto, se não nos perdemos pelo caminho, nós e quem nos ouvir contar como fazemos amor, lá está a cama e os lençóis e debaixo deles o colchão, se é confortável não queremos saber, eu estou já despida da cintura para cima, a memória da roupa que trazia não existe, a blusa branca ou azul, uma delas ficou lá atrás. Atiramo-nos para a cama que se queixa da violência do embate, um pouco mais de força e tínhamo-la quebrada em duas metades, Ele despe-se lentamente diante de mim, Ela deita-se na cama, apoiada nos cotovelos, atira a cabeça e o cabelo para trás, a claridade deixa-lhe metade da cara num resto de sombra, está despida da cintura para cima, a blusa branca que trazia com botões forrados a renda rendeu-se nas minhas mãos, mais nada foi preciso pedir que saísse do meu caminho, o peito está nu, a descoberto, consciente da minha sede, Ele agora despe o resto da roupa, está nu à minha frente, avança para a cama, a minha saia castanha faz uma vénia e lentamente deixa adivinhar a pele das coxas, toda a tarde é desejo, frutos e sol, depois os olhos recebem a escuridão, fechados como um túmulo de pedra esculpida, nasce o grito do fundo da boca.
Deixam-se as palavras à porta do desejo, as paredes brancas bebem a luz e as palavras, o sol e o verbo, recuamos pelo mesmo caminho, da porta do quarto pelo corredor até à porta da casa, aquela que nas ombreiras se apoiava para não nos deixar passar, pelas escadas rapidamente até aos últimos degraus para a rua e o ar que de novo se respira, afinal não houve por aqui terramoto algum, apenas a mais pequena brisa sopra no estreito flanco da rua que dorme ao relento sob as luzes amarelas dos candeeiros, dentro de uma janela ouvem-se duas palavras, ou melhor, ouve-se um silêncio insuportável, depois duas palavras, mais um pouco de silêncio e por fim um pranto mudo, pacífico, dormente, daqueles em que as lágrimas correm para dentro em vez de para fora seguindo os trilhos da pele.
07 abril 2008
mudar de olhos
Era eu, eu ou uma sombra escura, Que escuro estava, apenas algumas luzes na noite iluminavam o passeio no centro da avenida, era eu debaixo das árvores, dos ramos, das braças das árvores, tu pintada de braços verdes, era eu debaixo dos primeiros ramos a meter medo com o tamanho que tinham, eu caminhava sozinho, é assim que gosto de caminhar, outros passos ao meu lado distraem-me, preciso de me ouvir bem fundo no silêncio, já o disse algures, já o escrevi no passado, o que está escrito, escrito está, daquela vez não menti, em outras alturas terei mentido, sim, é verdade, não, desta vez não minto, preciso de ter apenas os meus passos, um atrás e outra à frente, sucessivamente pela calçada já gasta, já rasgada pelas raízes das árvores, para lhes crescerem os ramos desta maneira têm de se agarrar firmemente ao chão, é preciso buscar fundo na terra água para beber, um dia secámos por não fazermos o mesmo, não tivemos braços e raízes para ir buscar a água ao fundo dos penedos, junto ao rio, na excitação de um beijo, quisemos demasiado e tivemos tão pouco. Doce, calma como o alto escuro de uma serra plantada no céu, a tarde escurece finalmente com a luz clara e metálica que é da primavera,