19 outubro 2007

Até amanhã

Disse ele, Até amanhã, e tamanhas palavras, assim ditas, tiveram o efeito de um grande terramoto, nos instantes seguintes dir-se-ia que as pedras escuras do castelo desabavam inteiras e todo aquele lugar era arrastado para um outro onde as paredes ruíram e jazem inertes ao nível do chão num monte de cimento picado, mas esta casa não desabou, o telhado continua direito, no mesmo ângulo em que foi construído para escoar as águas e proteger dos raios homicidas do sol forte de Julho, os alicerces não foram perturbados, muito ou pouco fundos lá permanecem, se sequer existem, as raquíticas paredes vagamente brancas, escurecidas pela humidade aí estão para quem as quiser ver, por fora com menos saúde, por dentro melhores, É fazer o favor quem quiser entrar, nós o que fazemos é muito simples, subimos as escadas muito depressa, ele à frente, puxando-me pela mão, eu atrás subindo um pouco a saia, antecipando talvez o que o desejo dificilmente deixa esconder, ou ajudando as pernas a depressa completarem os esforço dos degraus, saltamos o patamar, que todo o tempo é precioso, tropeçamos um no outro, a descoordenação é total, as pernas quase se cruzam, mas no fundo não importa porque mais tarde estaremos tão perto um do outro que a distância mínima que está entre nós agora parecerá um enorme rio que separa duas margens, o patamar ficou para trás, pequeno e sombrio, faltam poucas escadas, a porta já a vemos, as chaves estão nos bolsos, em qualquer deles podem estar, são poucos, são muitos, não sabemos, são agora apenas bolsos que guardam as chaves que são absolutamente necessárias para abrir a porta, não nos passaria pela cabeça, apesar de a respiração ir tomando conta dos pulmões, deitar abaixo a estúpida da porta que nas ombreiras se apoia para não nos deixar passar, e no entanto tudo é possível agora, somos capazes de destruir paredes como se os beijos que entretanto imaginámos fossem marretas e picaretas, felizmente a porta abriu-se facilmente, resta o corredor estreito onde a luz da tarde vem descansar os cabelos, aqui não pode ser, para o que queremos temos o quarto, uma cama com quatro pés e um colchão e lençóis e duas almofadas, será já demasiado para que dois amantes se amem e se destruam com língua e beijos, finalmente chegamos ao quarto, se não nos perdemos pelo caminho, nós e quem nos ouvir contar como fazemos amor, lá está a cama e os lençóis e debaixo deles o colchão, se é confortável não queremos saber, eu estou já despida da cintura para cima, a memória da roupa que trazia não existe, a blusa branca ou azul, uma delas ficou lá atrás. Atiramo-nos para a cama que se queixa da violência do embate, um pouco mais de força e tínhamo-la quebrada em duas metades, Ele despe-se lentamente diante de mim, Ela deita-se na cama, apoiada nos cotovelos, atira a cabeça e o cabelo para trás, a claridade deixa-lhe metade da cara num resto de sombra, está despida da cintura para cima, a blusa branca que trazia com botões forrados a renda rendeu-se nas minhas mãos, mais nada foi preciso pedir que saísse do meu caminho, o peito está nu, a descoberto, consciente da minha sede, Ele agora despe o resto da roupa, está nu à minha frente, avança para a cama, a minha saia castanha faz uma vénia e lentamente deixa adivinhar a pele das coxas, toda a tarde é desejo, frutos e sol, depois os olhos recebem a escuridão, fechados como um túmulo de pedra esculpida, nasce o grito do fundo da boca.

Deixam-se as palavras à porta do desejo, as paredes brancas bebem a luz e as palavras, o sol e o verbo, recuamos pelo mesmo caminho, da porta do quarto pelo corredor até à porta da casa, aquela que nas ombreiras se apoiava para não nos deixar passar, pelas escadas rapidamente até aos últimos degraus para a rua e o ar que de novo se respira, afinal não houve por aqui terramoto algum, apenas a mais pequena brisa sopra no estreito flanco da rua que dorme ao relento sob as luzes amarelas dos candeeiros, dentro de uma janela ouvem-se duas palavras, ou melhor, ouve-se um silêncio insuportável, depois duas palavras, mais um pouco de silêncio e por fim um pranto mudo, pacífico, dormente, daqueles em que as lágrimas correm para dentro em vez de para fora seguindo os trilhos da pele.

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