07 abril 2008

mudar de olhos

Era eu, eu ou uma sombra escura, Que escuro estava, apenas algumas luzes na noite iluminavam o passeio no centro da avenida, era eu debaixo das árvores, dos ramos, das braças das árvores, tu pintada de braços verdes, era eu debaixo dos primeiros ramos a meter medo com o tamanho que tinham, eu caminhava sozinho, é assim que gosto de caminhar, outros passos ao meu lado distraem-me, preciso de me ouvir bem fundo no silêncio, já o disse algures, já o escrevi no passado, o que está escrito, escrito está, daquela vez não menti, em outras alturas terei mentido, sim, é verdade, não, desta vez não minto, preciso de ter apenas os meus passos, um atrás e outra à frente, sucessivamente pela calçada já gasta, já rasgada pelas raízes das árvores, para lhes crescerem os ramos desta maneira têm de se agarrar firmemente ao chão, é preciso buscar fundo na terra água para beber, um dia secámos por não fazermos o mesmo, não tivemos braços e raízes para ir buscar a água ao fundo dos penedos, junto ao rio, na excitação de um beijo, quisemos demasiado e tivemos tão pouco. Doce, calma como o alto escuro de uma serra plantada no céu, a tarde escurece finalmente com a luz clara e metálica que é da primavera,

e eras tu, um corpo de braços abertos, um corpo, dois braços e um mar de cabelo só espuma e ondas, as árvores vão beber o sol à cor escura dos penedos, e eu perco-me no céu que é das andorinhas, outro dia chegaram e eu fui vê-las à janela, estava sentado no chão, descalço e elas chagaram, sabes, foi como se eu tivesse assistido ao último bater de asas no limite da exaustão antes de poisarem no calor dos telhados, foi de repente como uma chuva de verão, num instante curtíssimo começou a primavera e eu de olhos postos em ti, tu um corpo de braços abertos, mais um mar de cabelo que é só espuma e ondas, por vezes quando me decido a mergulhar nele tropeço nalguma pedra esverdeada de algas, tenho de agarrar o pé e enterrá-lo fundo na areia para que a dor se esqueça de mim, não para que eu me esqueça da dor. Outro dia chegaram e eu fui vê-las à primeira janela, aquela que abro sempre, depois abri a janela que está ao lado mas que nunca abro, desta vejo uma metade de céu azul, metade vermelho-telhado envelhecido com um pináculo inútil, tão inútil quanto as pombas que por vezes lá se encostam. Saí de casa encostado à primeira luz do dia, a primeira luz que indistintamente abre o céu para a manhã que começa, o calor descia já por uma brisa contínua mas suave, sabes, mal sabia eu que ias existir, quinta feira oito da manhã e eu sem suspeitar, sem me preocupar com a tua respiração, sabes,

também eu quero dar outra inclinação a esta rua, se for preciso fazê-la descer até ao Mondego, ir com as aves em direcção aos arrozais, a esta altura devem ter a força do verde cristalino das águas a lembrar dois olhos, dois olhos apenas são precisos para levar-me onde quer que seja, também eu quero ter um braço que te possa ir buscar ao verde dos teus olhos e poisar exausto em ti, um corpo de braços abertos, poisar feliz no teu ombro, no verde cristalino da água nos arrozais.

4 comentários:

DN disse...

perdoa a ousadia do empréstimo das palavras.. desse esquecimento da dor..

Anónimo disse...

Também eu queria fazer tanto, mas nem sempre podemos.

Resta aguentar a dor e esquecer.

(estou tonta hoje, não ligues)

Está bonito Nuno :)

Anónimo disse...

pena nao saber usar as palavras como quem bebe, chora, ri ou respira... como tu o fazes
de quem sao esses olhos verdes? quem me dera que fossem os meus...

. disse...

gosto especialmente da inclinação que queres dar a essa rua.

*