11 setembro 2008

Acabo de perder tudo. Os últimos cinco anos desta vida de vinte e dois apagados. Não tenho passado. Sem passado não há presente, e muito menos poderá haver futuro. As primeiras quadras com rima cruzada, os primeiros gritos que julgava serem ouvidos, as odes longuíssimas a percorrer as páginas cheias de exaltações, os sonetos mecânicos com a chave de ouro atirados com o fervor do sangue; os primeiros versos soltos, mais calmos, do fim da adolescência; a prosa pensada e construída convivendo com outra mais frenética, escrita por impulso. Não tenho passado. Não vejo agora como possa ter futuro. As pastas estão intactas, os ficheiros desapareceram - tudo o que escrevi em cinco anos desapareceu. Nem um cd, uma pen para aqui esquecidos guardam aquelas páginas. Um problema técnico que é um problema emocional e que me transcende - uma desilusão, uma tristeza profundas. Até me recompor para decidir o que vou fazer, ou até resolver isto, não volto cá. Não quero voltar a escrever. Até um dia.

Para mim

Celebra ao menos uma vez a tua folia. Porque a loucura é a forma mais alta da inteligência.

10 setembro 2008

Um dia

Um dia destes
um rio onde as margens
sejam as tuas mãos
um dia que seja
dourado de sol
no cume das árvores,
um dia
que nasce nesse lugar
por onde desabam os cabelos
entre os braços do Outono,
seguirá os trilhos do sul-poente
os flancos de um corpo
adormecido
onde não exista outro corpo

procura nessa luz
refractária
a pureza de seres tu.

Normandia Azul

Quando entras
e o teu cabelo
passa debaixo dessa porta
um vento frio
o mar do norte
desfazendo-se
em tempestade
o frio inteiro
nos teus ombros

doem-me as mãos
de te escalar,
normandia azul,

atira-me uma onda
a derradeira
vaga de arrastar
navios.

03 setembro 2008

Rua

A pergunta foi atirada para o ar no meio do tremor da língua e da respiração, enquanto os olhos procuravam o cetim do vestido e um colo onde pousar,

Não posso falar, não posso dizer,

Estarem dois lábios adiados sem aparente razão, ficar um corpo a arder sem que se saiba porquê, e tu dirias, Esta a razão de as minhas mãos tão pequenas nas tuas tão grandes,

Desaparecerem, queres tu dizer

E a resposta também adiada, sem timbre nem côr, um silêncio de pasmar e de se ouvir a madeira a existir, uma secretária pesada de pau preto toda em gavetas, a porta diante dela sempre fechada, os tapetes no chão onde ficam os passos, destruíndo os passos que se dão, um à frente e atrás do outro sucessivamente, no fim de tudo o corredor debaixo dos pés com uma luz fria de inverno a entrar pelas janelas

Os passos - de quem eram?

A pergunta foi atirada para o ar no tremor da língua - entre os lábios adiados e vermelhos de neles o sangue, um peso no peito, o da respiração,

dois braços, eram dois braços de pau preto

Um vestido de cetim a um canto do mar diante da porta ou ainda debaixo dela, passando, e eras tu, uma onda de tecido a acabar com o silêncio

apenas o cetim

Os passos ficaram na luz fria do corredor com lajes de mármore pedra gelada para se morrer, à esquerda era a cozinha, toda forrada a livros e arquivos antigos, à direita, e antes dela, uma janela jorrava luz de dentro do prédio, caía num largo parapeito onde tantas vezes me sentava, longe do chão, a imaginar tudo

a Vara de Moisés a pesar no braço

Dois braços de pau preto diante da mesa metida a um canto diante da porta, esta metida a outro canto, e uma respiração à espera, adiada, a perguntar

Os passos - de quem eram?

O perfume escondido no marfim do pescoço onde uma vez beijos e a mesma respiração, agora só leveza e frescura, e eu a colher árvores e jardins inteiros para plantar à tua porta, uma rua inteira à espera que amanheças, nove e meia da manhã e eu sem dormir, um fantasma com as pálpebras mortas pela calçada sem rasto de sangue que as siga, Diana, adia-me esta rua para um dia de inverno, um dia em que eu possa entrar pela tua janela e tu estejas a verter o mar inteiro

(os olhos verdes como a erva mais alta de Maio)

pelos teus olhos.