05 junho 2011

Chovia devagar nas pedras escuras da calçada, que subia, pesava-me nos ombros toda uma noite de horas longas e incompreensíveis, a rua como que escalava um pedaço de serra enfileirada, os olhos não poderiam fugir, mesmo que tivesse sido essa a sua régia vontade, para outra cor que não fosse a do xisto que amuralhava toda a aldeia, e a rua continuava a sua escalada de monge, preferindo a solidão e o silêncio, mesmo entre as gotas da chuva se instala um silêncio insondável e perpétuo. a esta hora todos dormem, a chuva continua a lamentar-se enquanto desce a rua, é um lamento de folha caída na frenética tarde de outono, e há penedos de ambos os lados da rua que parecem casas, e têm portas por onde só passam gentes de outras eras, e uma janela que só a atravessa a primeira luz branca da manhã, aqui as casas são braços escuros que nascem de dois ombros idênticos, e correm estreitas subindo a serra parecendo fundir-se nos penedos que com sobranceria ameaçam desistir da suspensão secular a que geologicamente estão votados, o século dos séculos virá em que a ameaça se torne em acção. Os braços da rua flanqueados por penedos correm estreitos em direcção à serra, são braços que se prometem mutuamente longos abraços, e fraternos, mas dificilmente unirão sequer as mãos, impensável seria pedir a um rio que unisse as suas margens, aproximando as mãos ou os braços, juntando ombro a ombro as duas bandas, a de cá e a de lá, teriamos um rotundo não como resposta, o rio quer viver, correr, marchar, caminhar até ao verde oceano. O mais que se pode pedir a esta rua é que deixe tocarem-se as mãos de quem nela vive, nesses penedos que se assemelham a casas com portas onde só passam gentes de outras eras, essas para quem o frio é o modo natural de sucederem todas as coisas, as boas e as más. não adivinhamos sequer se pelas janelas mais altas se não tocam as mãos dos vizinhos, e se não trocam as mais belas palavras e as que sendo feias todavia não deixam de poder ser ditas, quando justas, não seria estranho o facto, proibido reagir com espanto, afinal de janela para janela sente-se a respiração pesada e profunda que só o sono descansado proporciona, este vizinho sabe despreocupadamente que tudo está bem em casa do freguês, o outro sabe que na deste ainda se juntam marido e mulher enquanto a luz do fogo permite, depois do fogo suspendem-se as horas, permanecem apenas as esperanças, os esboços de um recomeço, sublinhe-se que aqui não há certeza se na escuridão ainda existam os objectos, é pergunta que deve ser feita, questão sobretudo pertinente, se na escuridão existe esta cama, a porta que acabámos de atravessar e trancar, a cómoda onde pacientes e escassas aguardam as roupas o dia em que serão usadas, e se existem os corpos que em segredo desejamos, os beijos, as facas de amar violentamente no auge do prazer, melhor por isso amar à luz de um fogo vacilante e ancestral com que amaram também os primeiros e originais vizinhos.

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