26 abril 2007

I

A luz das pedras do castelo caía sobre a cidade. E àquela hora do dia o castelo parecia maior, não sei porquê, talvez fosse uma ilusão dada por certa inclinação do sol e do jogo de sombras que ali se jogava ou pela exactidão da hora e do calor, e houve então uma espécie de véu, uma espécie de miragem que nos fazia olhar para aquelas pedras de outra maneira, para aquele rochedo secular, aquele colosso quase maior que o próprio monte onde alguém teve a ideia de o construir há oito séculos atrás. A luz que caía das pedras do castelo era bem conhecida por quem vivia na sombra daquelas muralhas, voltamos a falar delas porque elas são a vida de muita gente, ali morreram muitas lágrimas, sozinhas ou junto a outras do seu género, ou mesmo, não se sabe, junto a outras de outro género, essas a que chamamos de crocodilo, pois essas não são verdadeiras, todos sabemos que o animal crocodilo se deixa chorar não por desgosto, mas porque é esse o resultado de uma refeição conseguida e apreciada. A luz, dizíamos, caía das pedras do castelo, era uma luz branca de dia, mas uma luz de vela assim que anoitecia, empurrada contra as muralhas, como se ali sempre tivesse existido um ponto de luz, como se ali sempre tivessem estado as pedras, umas sobre as outras, formando ameias, torreões, muralhas, chão e tecto de divisões interiores, aposentos ou quartos, ou como lhes quisermos chamar. E a cidade lá estava, desde sempre dizemos nós, um manto de retalhos de luz, Tantas ruas, disseste a meia-voz, Parecem dormir, respondi eu. Das muralhas do castelo é a impressão que temos. Aqui estamos nós. Debaixo da luz das pedras do castelo. Dormimos, não dormimos, não sabemos já, estamos exaustos, entregámo-nos um ao outro, foi há poucos segundos, Ainda trago os teus olhos nos meus, o teu cabelo acabou de sossegar. Dorme.

Sabes o que te quero dizer. Talvez ontem não soubesse, nem o soubesses tu, mas subia no ar um murmúrio, o ar estava quente, ainda não cansado mas já pesado, o vento entrava pelos nossos cabelos, entrava na nossa pele sem pedir, saía sem dizer, Água vai, quando estava longe apenas dizia, Água vem, e ficávamos parados sem nada dizer, que é como quem diz, ficávamos calados, convém esclarecer, muitas vezes estamos calados e dizemos muito, mas nesta situação calados estávamos e mudos ali ficámos. Depois o dia adormeceu com as muralhas do castelo, deixou-nos por algumas horas, então adormecemos também por fim, é o que fazem as pessoas quando não suportam a espera de um novo dia, mas que não têm medo dele. O dia começa cedo, não quando já vai a meio, ou quase no fim, nesse caso para quê acordar, para quê sairmos da cama, para quê respirar, poderíamos perguntar se nos apetecesse, e é o que perguntamos, Para quê este céu, que já não é tal azul como no tempo de nosso pais, e então ficaríamos outra vez mudos, porque a resposta não vem, tarda a vir ou virá entretanto, embora nos pareça pouco provável. Não interessa todavia o que pensamos, se aqui estamos, se aqui podemos estar foi porque nos deixaram, não vamos então perder o tempo com histórias que nem mesmo para nós são importantes. Dormimos, ou pareceu-me que dormimos, como podemos ter a certeza que dormimos se não nos lembramos o que fizemos, se nos virámos para o lado direito quinze minutos depois de adormecermos, se mexemos aquele pé, e não o outro, se abraçámos quem quer que estivesse ao nosso lado, se nos beijámos. Apesar de tudo isto que fica dito, dormimos.

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