17 maio 2007

IV

É preciso acreditar. Eu preciso. Já to tinha dito, mas digo outra vez. É por isso que te procuro. Saí da cidade há uns minutos, talvez menos de uma hora, e não me esqueci do que tenho visto, não me esqueci do que te quero dizer quando te encontrar, não é difícil lembrar-me, estou sozinho, vou do lado da janela e o expresso não pode andar mais depressa. Encosto a cabeça à janela, não a sinto, sinto os ossos do teu ombro e o teu cabelo por perto, o teu cheiro, o teu cheiro, e outra vez o teu cheiro… Agora vai chovendo na minha janela e nos teus ombros que estão despidos, e eu lembro-me de quando eras um sorriso aberto, uma tarde de azinheiras e de sol. Há uns segundos vi um pombo, um que abriu e bateu as asas primeiro que todos os outros, esses outros não tiveram tempo para o seguir, não se puderam prevenir para apanhar aquele primeiro, que julgava ser um carapau de corrida, interessante pensar como saberia este pombo da existência do peixe carapau, e mais interessante por que terá querido imitá-lo em rapidez e profissão, a de corrida. Tu sorris e deixas cair a cabeça e o cabelo para trás como se entregasses o teu pescoço à minha sede, em movimentos de chicote e espada. E eu quase me esqueço do que te dizia, do que te queria contar. Ah, sim, o pombo, dizia eu, fugindo de considerações sobre este ou aquele indivíduos de sua espécie, é um animal disfarçadamente virulento e sanguinário. Ou o bode expiatório das frustrações do homem, dizem uns. Talvez, dirão outros. Não, exclamam outros ainda, e mesmo eu, que não gosto deles, sejamos sinceros pelo menos desta vez, mas sem dúvida um bicho que se alimenta do chão, que imundície, que voa por todo o lado e por todo o lado se descuida para cima das pessoas, Oh gravidade, oh newton, oh física. Esse bicho que passa o dia nas praças ao sol, a ver passar as pessoas e no entanto estupidamente tem medo delas, e que quando se junta em grupo se lembra de levantar voo repentinamente e dar uma volta voando pela praça, duas voltas voando pela praça, três voltas voando pela praça, quatro voltas voando pela praça e depois regressa ao mesmo posto, ou ponto de partida, não sabendo o que tais palavras significam, fingindo que nada aconteceu por ali. Fingindo que não é nada com ele, e depois volta a depenicar o chão maquinalmente. E também esse mesmo que desfigura a pedra, a parede, a estátua ou o canto de sombra onde se lembra de pousar. Esse bicho não muito desejado por alguns, conheci aliás poucos que o afirmassem alto e bom som, além de eu próprio, sejamos sinceros, ao menos duas vezes, porque já o fomos há pouco, eu e tu, dez linhas acima, e voltas a rir-te de mim porque me estou a repetir e a contradizer, que tonto, não tenho vergonha. Mas é ao mesmo tempo apreciado por outros, mesmo muitos, Sabias, há quem os admire, há quem os coleccione, Imagina tu, meu anjo, esses outros que acham muita gracinha em largá-los, não raras vezes a centenas de quilómetros de distância, achando depois muita gracinha ao outro animal que vem voando, voando, voando incansavelmente e vem ter precisamente à gaiola que o bicho dono reservou para ele e mais vinte ou trinta da mesma espécie, confundindo-se aqui dois reinos, o animal e o vegetal, pois a postura destes pombos é em tudo semelhante à postura de uma couve, de uma alface, de uma orquídea ou de uma rosa, isto é, vegetam. Não respondes, Vou talvez agora descansar um pouco, já me vai faltando o ânimo, vou adormecer, vou adormecer, a cabeça no teu ombro, na janela do expresso, que importa, Abraça-me…

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