17 março 2008

Nau sem rumo

Raramente passo pela tua rua,
essa em que das janelas tombam
os vultos escuros e esguios
dos teus ombros, tremendo
de ansiedade
na antecipação dos meus passos.
Eu raramente deito o meu corpo
junto ao teu,
quem te guia a cintura
pela brancura das mãos pesadas,
quem nau sem rumo te guia
a pele dos flancos em escarpas,
pela brancura das mãos pesadas?

Tu sempre quiseste a palavra,
a casa branca e um chão de mar
onde pudesses ver fundo
o lugar das rochas.

Pela noite

Pela noite eu um farrapo de óculos molhados e embaciados, a água da chuva a correr-me implacável pelo cabelo que já não é muito mas ainda é possível alinhá-lo de modo a que as mulheres não percebam, a água a correr-me pela testa, e já não sei se é a água se és tu, tornou-se praticamente impossível abrir os olhos tu noite branca e pálida adivinhada em meias escuras e saia curtíssima subindo pelo joelho, se eu te dissesse que no final da noite toda a roupa estará rasgada tu depressa fugirias de mim enojada e chorando afinal sempre eras tu que me chovias pela cara, reconhecia o sal das tuas lágrimas mesmo se estivesse náufrago-mar de uma caravela sem mastro e sem vela e demasiado pesada para aguentar a tormenta de uma noite sem princípio nem fim por estar o céu coberto de negro, não escuro, negro, a cor verdadeira da morte, a morte certa que veio respirar ao meu pescoço uma destas tardes, a mesma que veio passar a mesma língua rosada pelo pescoço e depois pelo ouvido e é assim que tu fazes também, tu noite, tu mulher, se me queres levar para o lugar de onde vens e de onde vem o teu perfume, e onde te vestes e te despes sem qualquer espécie de pudor, para o lugar onde gostas de caminhar nua pela casa e eu doido atrás de ti, leva,

se ao menos pudesse acalmar esta chuva lançando os olhos para o céu, ou as mãos, gritando que parasse de chover e viesse a geada ou uma grande lua de noite fria, ao fundo milhares de janelas de olhos virados para a praça, do alto das pedras do castelo cai uma luz amarela, as ruas são também preenchidas por essa luz que vem dos candeeiros antigos, ao menos esses deitam do ventre uma luz certa, cujas sombras vacilam mas não tremem como as sombras daquelas luzes esbranquiçadas e ténues das cozinhas,

e eu beijos e pedras, mais pedras do que beijos, e eu deitado no mármore tricolor do claustro geral apenas aberto para o céu e para a cabra que domina os telhados também eles tricolores, e eu deitado, dizia, no mármore do claustro apenas aberto para o céu com excepção de três entradas, ou saídas, conforme se queira, é necessário ser justo tanto para quem entra como para quem sai, duas delas dão para umas escadas, a outra também ainda que indirectamente…

15 março 2008



Bloc Party - Blue Light

You'll find it hiding in shadows
You'll find it hiding in cupboards
It will walk you home safe every night
It will help you remember

If that's way it is
Then that's the way it is

I still feel you and the taste of cigarettes
What could I ever run to
Just tell me it's tearing you apart
Just tell me you cannot sleep

If that's way it is
Then that's the way it is

And you didn't even notice
When the sky turned blue
And you couldn't tell the difference
Between me and you
And I nearly didn't notice
The gentlest feeling

You are the bluest light
You are the bluest light
You are the bluest light...


Para ti, Laura. Não desaparecerei enquanto não voltares.

14 março 2008

São dois lábios, os teus,

as aves mais breves,

silêncio puro da manhã.

Regresso

Eu regresso a pouco e pouco
a um sol triste de verão
(um sol que não se pôs),
ao teu vestido de algodão

branco vestido de verão.

12 março 2008

Durante semanas não pude achar uma palavra, não pude construir com gosto e ideia os meus pensamentos, não pude articular um desejo, uma inspiração que fosse, uma ténue memória existia já sobre o que quer que tenha escrito ou dito nos últimos meses. Durante semanas não pude achar uma palavra, simplesmente não pude, qualquer tentativa saía amplamente inacabada, supérfula, esgotada às primeiras linhas. Mas hoje sei, isto é, descobri há uns dias aquilo que realmente sempre desejei. Eu sempre desejei uma plateia. Eu preciso de uma plateia. Pessoas que se sentem diante de mim e me vejam. E me aplaudam. É apenas o que preciso. Anda toda a gente a encher a barriga das frases e dichotes dos outros quando deviam estar a olhar para mim, a admirar-me, as mulheres a venerar-me. Seria de toda a justiça: eu sou maior do que eu próprio. Há muito que me ultrapassei. Há muito que deixei de ser eu para ser um eu distinto e completo. Não sei nem percebo o que terá provocado isto, reconheço porém que dias não faltam que concorram para que hoje eu não me sinta perto de mim, próximo o bastante para poder dizer que eu sou eu. Não. Eu sinto que cada vez mais há alguém que me habita para além de mim. Eu preciso apenas que me admirem. Preciso de uma plateia, preciso de palmas e de sorrisos; eu quero que todos oiçam a minha voz, ouvir-me do lado de dentro não tem piada nenhuma, é uma maçada ser-se eu sem que os outros me vejam; rapidamente me canso de estar só comigo. Comigo. Esse outro que para ali está e que não raras vezes chega aos berros: a perfeita síntese de um arrivista, suponho: um homem que estoira de soberba e de exageros: grita, esbraceja e graceja, todos o ouvem, todos o lêem, rebentam de rir assim que diz uma palavra, enfim, ele é a parte de mim que eu sempre desejei ser completamente, sem naturezas refractárias ou intermitentes; Eu quero ser inteiramente génio, inteiramente louco e exagerado, ateu, sanguinário, asqueroso, chocante; pois eu preciso apenas que todos reconheçam que sou inteiramente génio, louco e exagerado, ateu. Mas tudo está tão longe, é tudo tão difícil, pelo meio estão os dias, estão as noites que por serem tão escuras me custam tanto a passar: dói tanto, se soubesses, dói tanto estares em mim e sermos dois a habitar este corpo. Partilhar a minha voz contigo, tu, esse outro inteiramente génio, eu te invejo por seres quem és, por seres tudo o que eu não sou e talvez nunca serei. Eu preciso urgentemente de palmas, de uma plateia que seja como eu e que todos sejam como eu e me admirem, não tu, não ninguém, apenas eu mereço ser visto, ah se soubesses o que é ser eu e não tu, enfim sermos dois quando podíamos ser um. Deixa-me ser tu de uma vez por todas. Dá-me ao menos esse prazer de ser tudo num só corpo, de ter em mim sublimado um ser genial, todo em sarcasmos. Que sou eu. Que és tu. Eu to peço. Eu to exijo.

10 março 2008



Também já tenho; "The complete illustrated works of Edgar Allen Poe"; e o entusiasmo é tão grande que não posso deixar de agradecer ao Bruno
pela dica. Já tenho companhia para as tardes de chuva.

07 março 2008

Eu tenho

Eu tenho toda a fome
e tenho toda a sede,
que o calor não cabe neste corpo,
a luz passa por mim ténue e vaga
como a poesia,
os versos não me habitam,
as musas não me visitam.

Eu tenho toda a solidão (desilusão)
e tenho todo o fracasso,
eu queria que tu aparecesses
na crina de um cavalo
com um vestido de verão

o vento demora-se pelos penedos
e pelas giestas,
indistinto marulhar,
murmúrio de dor,
é tempo de o sol chegar
ao silêncio negro
dos penedos e das serras
(sem passos que as pisem)
dourar de verde as terras
e as águas frescas do paiva,
mas ele (tu) tarda (tardas),
tu que me olhas
-que eu sei que sim -
defronte da minha janela,

tu,

dois olhos cruzados de uma luz azul,
deixa que fique em ti
como a multidão de aves em baixo,
namorando o Mondego.