29 maio 2007

V

Adormeço e volto a acordar. Talvez uma travagem, um movimento brusco na direcção, uma conversa, uma gargalhada me tivessem despertado, não interessa. Porque afinal era verdade, eu sonhei e esperava que fosse mentira, mas a verdade e a mentira são duas formas de contar as histórias, e andam muitas vezes de mãos dadas, entrelaçadas. Eu viajava, dizia, viajava à tua procura, tu partiste, tinha o Verão acabado e tu partiste, de manhã, de tarde, quem sabe já de noite, ninguém o poderia dizer, ninguém te viu, nem eu percebi que quando amanheceu não tinhas o teu cabelo na almofada, nem tu estavas ali. Abro os olhos porque a luz me obriga, por minha vontade tinha-os fechados, de pálpebras descansadas, se pudesse dormia dias inteiros até te descobrir à porta do quarto. Repara, estamos a meio caminho, à frente temos uma serra alta, aquela a que chamamos de candeeiros, porquê não sabemos, um dia haveremos de descobrir. É uma serra já muito velha, já muito gasta, algumas cadeiras à frente ouço dizer com um suspiro, É o tempo… O tempo, dizem-nos, Esse que destrói mais do que tudo o mais e não deixa nunca que o vejamos. Depois da serra estamos noutro mundo, a terra é outra, parece-nos, o país e outro, temos a impressão, mas apenas estamos do outro lado de uma serra que não é, de longe, das maiores deste planeta que é tão pequeno mas se julga tão grande, não, essas estão longe, muito longe, para as ver, é curioso, é preciso ir ao outro lado do mundo, mas depois da nossa serra, tratemo-la assim pois já a conhecemos há muitos, muitos anos, depois da nossa serra muda tudo, e no alto dela vivem ali umas nuvens que, quando alguém se lembra de lhes perguntar, respondem, Desde que sabemos, desde que nos lembramos, por isso choram, por isso chove sempre ali, do outro lado não, Não temos vizinhos, dizem, olhando o outro lado, uma planície que ali começa e quase nunca acaba e onde vivem, também desde sempre, alguns cedros, Alguns não, corrigem-nos, Muitos. Vivem ali, dizemos nós, muitos cedros naquela planície, Sempre as vimos ali, nunca nos falámos, dizem eles das nuvens suas vizinhas, estranha relação, estranha vizinhança. Mas não queremos saber mais, o que sabemos basta-nos, controlemos a nossa curiosidade, não podemos relatar tudo, tudo escrever, tudo contar. A meio da serra vimos, isolado, um grupo de pinheiros que ali tinha lançado ao chão as suas raízes, ali conversavam, ali se tinham deixado ficar distraidamente, ou não, ali discutiam assuntos de seu interesse, e que por isso não são da nossa conta, são assuntos de pinheiros, não dos bravos mas dos mansos, aqueles vivem noutros lugares, desde o tempo do rei poeta e lavrador, o sexto da tabela, preferem ajudar o homem a controlar as areias e a construir naus que os levassem pelos mares oceanos, bem diferentes em personalidade e sabedoria, estes, estes mansos de que estamos falando preferem as serras. Eram cinco os pinheiros, explicava-te eu, mas havia um, desde logo, e à vista desarmada, que era bem diferente dos outros, alto, muito alto, e magro, muito magro, de copa pequena e bem redonda lá no alto, os outros tinham alturas e copas semelhantes, para não dizer idênticas, para não dizer iguais, eram baixos, muito baixos, e gordos, muito gordos, mas aquele lá no alto, por ser único naquelas paragens, parecia dizer aos restantes, Descansai, não tenhais medo de ser diferentes, curioso ensinamento este, vindo de um pinheiro alto, muito alto, e magro, muito magro que ali procurava, afinal, justificar a sua diferença apaziguando os outros pinheiros, seus vizinhos e amigos, e assim eu e tu percebemos, nos poucos segundos em que observávamos aqueles pinheiros mansos, onde está e o que é a amizade, palavra que gastámos já tanto que não sabemos o que quer que significa, todos nós, não apenas tu e eu.

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