31 agosto 2007

De noite as ruas perdem todo o sangue
de quem por elas durante o dia passa,
e no chão imperfeito acontece a
insónia escura de um longo dia, e

o silêncio

é maior do que o trovão que dele
instantâneamente nasce,
e o ar vibra com as águas de um rio,
o vento na copa das árvores estremece
o fundo das costas, um leão surge rente
ao fundo dos olhos,

e nada acontece, porque

de noite as ruas perdem todo o sangue
de quem por elas durante o dia passa.

30 agosto 2007

Esgotando palavras

Eles existem. Vivem...
e ardem. Vermelhos.
Teus lábios. Escuros,
vermelhos, tingidos de
sangue. Pulsam.
Pedem sempre outros lábios
para dormir. Os meus.

Nos teus lábios existo.
Adormeço.
Eles vivem. E ardem.
Teus lábios. Cruzados, juntos
abertos, mordidos, mudos...
existem. E ardem.


25/2/2005

Do fundo das pedras

Quando tu ias beber a água do fundo das pedras
eu esperava sentado pelo Verão que chegasse,
pela lua que olhasse
e te visse beber a água do fundo das pedras,
eu esperava;
nesses dias o céu era tão azul,
e o mar era tão verde, atlântico;
depois tu voltavas de uma árvore, tão fresca,
ao sol, ao sol que resplandecia,
caminhavas e nem os teus passos se ouviam,
da tua boca nada se dizia,
tu voltavas, a tua saia quase tocava o chão
e nascia na cintura, acima do umbigo,
o teu peito adivinhava-se
entre os braços, que trazias cruzados,
e eu esperava, esperava sossegar desse tão
doloroso sorriso que tu fazias,
eu esperava outra vez pelo sol, pela lua que olhasse
e te visse beber a água do fundo das pedras.

24 agosto 2007

Mãezinha

A terra de meu pai era pequena
e os transportes difíceis.
Não havia comboios, nem automóveis, nem aviões, nem mísseis.
Corria branda a noite e a vida era serena.


Segundo informação, concreta e exacta,
dos boletins oficiais,
viviam lá na terra, a essa data,
3023 mulheres, das quais
45 por cento eram de tenra idade,
chamando tenra idade
à que vai do berço até à puberdade.


28 por cento das restantes
eram senhoras, daquelas senhoras que havia dantes.
Umas, viúvas, que nunca mais (oh! nunca mais!) tinham sequer sorrido

desde o dia da morte do extremoso marido;
outras, senhoras casadas, mães de filhos...
(De resto, as senhoras casadas,
pelas suas próprias condições,
não têm que ser consideradas
nestas considerações.)
Das outras, 10 por cento,
eram meninas casadoiras, seriíssimas, discretas,
mas que por temperamento,
ou por outras razões mais ou menos secretas,
não se inclinavam para o casamento.


Além destas meninas
havia, salvo erro, 32,
que à meiga luz das horas vespertinas
se punham a bordar por detrás das cortinas
espreitando, de revés, quem passava nas ruas.


Dessas havia 9 que moravam
em prédios baixos como então havia,
um aqui, outro além, mas que todos ficavam
no troço habitual que o meu pai percorria,
tranquilamente no maior sossego,
às horas em que entrava e saía do emprego.


Dessas 9 excelentes raparigas
uma fugiu com o criado da lavoura;
5 morreram novas, de bexigas;
outra, que veio a ser grande senhora,
teve as suas fraquezas mas casou-se
e foi condessa por real mercê;
outra suicidou-se
não se sabe porquê.


A que sobeja
chama-se Rosinha.
Foi essa que o meu pai levou à igreja.
Foi a minha mãezinha.

Rómulo de Carvalho

Fotografia

Havia naquela fotografia um céu azul, um céu que não é de hoje, tão azul como aquele seria impossível agora, apenas se um pintor acordasse com o sol a entrar-lhe pela janela, pegasse no pincel, na paleta e escolhesse aquele azul para pintar aquele céu. Havia naquela fotografia um céu azul, um céu que não é de hoje, tão azul, muito claro, quase te obrigava a usar as tuas pálpebras para que não ficassem feridos os teus olhos, muito escuro, quase te obrigava a recuar para não te assustares, mas foi o que fizeste, com medo, Não, dizes tu, e eu bem sei que não foi com medo daquele azul escuro que recuaste, não, apenas quiseste olhá-lo melhor, porque aquele céu não é de hoje, não importam as pessoas que ali estão a sorrir, um casal em pé no dia em que se uniram para sempre, no dia do seu casamento, ele estava dentro de um fato datado, e sorria, o sol estava de frente, por isso tinha os olhos semi-cerrados, mas o sorriso ali ficou, era preciso mantê-lo a todo o custo, sabe-se lá o esforço que fazia o noivo, a expressão é a de quem necessita urgentemente de correr ao quarto de banho fazer das suas; o fato que trazia era quase tão azul como aquele céu que não é de hoje, e o desenho, o corte não é de hoje, por isso o recuaste, Sim, por isso recuei, Quiseste olhá-lo melhor, perceber que cores tem na verdade aquela grande tela que espera a melhor oportunidade, a melhor ocasião para ser pendurada num minúsculo e raquítico prego ferindo a parede, perceber que tamanha felicidade será a de quem se casa, um glorioso sentimento, um júbilo de nunca mais acabar de tão fugaz ser. Ela, a noiva, imediatamente ao lado esquerdo do marido, perigosamente perto, quase jazendo de cansaço, mas simplesmente muito feliz, era toda ela um vestido muito branco, imaculado como devem ser e como devem ser também as noivas, o vestido sabemos que o era, a noiva nunca o poderemos saber, seria indelicado perguntar-lhe, e no mínimo indecoroso. O braço direito tinha-o tomado o noivo, apaixonadamente, e o braço e a mão direitos traziam um bouquet vulgar, este casamento é um do seu tempo, feito de flores de laranjeira. Sabemos, e é o que nos basta, que aquele céu não é de hoje, quem quer que tome o esforço de virar a testa para cima facilmente o constata, o céu que nos serve de tecto não é hoje tão azul, pelo menos em proporção ao dos tempos de nossos pais. E na verdade alguns anos passaram, ninguém poderá dizer quantos, mas tu e eu sabemos, vinte e cinco anos passaram, um quarto de século passou, nove mil cento e vinte cinco dias, e na verdade eu e tu sabemos que aquele céu não é de hoje, tão azul, muito claro e muito escuro que se tinha estendido em cima das cabeças daquele casal que sorria no dia do seu casamento, ele de fato azul de época, curto nas mangas e nas calças, as meias brancas, a gravata muito estreita, simplista, oh moda, oh tendência, oh estilo, por que provações terá o homem de passar. E ela de vestido de noiva, claro está, que as noivas querem-se de branco, ou não o são, noivas obviamente, e o branco será eterno, imaculado, as luvas de renda e o véu a rematar, que linda renda também, e era um dia de sol e claridade e sorriam para a fotografia à frente de uma casa nova, a estrear pelos noivos, o seu ninho de casados, que felizes estão, naquele dia de claridade e de céu azul, tão azul que dizemos que não é de hoje.

Havia naquele dia uma brisa intemporal, alguns dias de sol trazem uma brisa leve, e um segredo invade o ar, um mistério que nem sequer se sabe que é mistério, trata-te portanto de um segredo bem guardado, uma voz que não se ouve, uma brisa que não transparece mas que se sente, quase se pode partir e repartir, porque quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, é tolo ou não tem arte, mas ninguém ali pretende partir e repartir o ar, que tolice, imaginar que se pode repartir a atmosfera, os noivos certamente estarão longe de o pensar sequer, estão à frente de sua casa à espera que o fotógrafo decide que bastam as fotografias, que os convidados decidam que bastam as conversas, que entreguem os seus cumprimentos e que se vão embora, que os pais do noivo e os pais da noiva entreguem as suas últimas recomendações, Filha querida que deixas de ser minha, sê boa mulher para o teu marido, Filho querido que deixas de ser meu, governa tua casa como eu governei a minha, mão firme, e respeita tua mulher, que é tua de direito e de imaculado matrimónio, que se vão embora por fim para que os noivos dêem início às suas vidas de marido e mulher, que a vida verdadeiramente começa agora, naquele dia de sol e claridade e de brisa secreta quase palpável, divisível, ao contrário daquela santificada pessoa divina, que é indivisível e, o que é mais, una.

Unos estão agora os noivos, ele dentro dela e ela fora dele, para ele é um regozijo, para ela uma quase-dor que não se suporta, o suor frio do pecado inicial e capital, morde-se o fruto, cai um pomar, rasga-se a dor, sofre-se por amor, e o acto fica consumado, para ele é um regozijo, o prazer de sucumbir ao desejo, para ela é uma desilusão, uma quase-dor, uma frustração, ainda tão frescas as palavras de sua mãe, virão outras, o sexo é ocasional, homem e mulher deitam-se juntos todas as noites, basta o toque de uma perna na outra perna para acontecer, para se revelar o sexo escancarado, perdoe-se o empréstimo da expressão, a camisa de dormir sobe até à cintura, a calça desce até ao joelho, passa um minuto e começa o prazer de um, a quase-dor de outro, passa outro minuto e o prazer desce até à espinha, o prazer de um é finalmente o prazer de outro, passa outro minuto sem que esta música se acabe, as bocas juntam-se para respirar, o ar de um é o ar do outro, pedra ofegante, os olhos obrigam-se a fechar, as pálpebras querem-se bem cerradas quando tudo acabar, passa outro minuto, o derradeiro, o prazer de um é o prazer do outro, os corpos ardem, as pernas cingem-se à cintura, não há hipótese de fugir, não agora, os braços constroem um abraço sufocante, as unhas apertam, a pele agoniza, nada mais importa, o prazer de um é o prazer de outro, o prazer, o prazer é agora, solta-se o fruto, a terra é fértil, será plantado, assim será, pode-se respirar, abrir os olhos, é o momento, o grito sai da boca, o prazer de um, o gemido pára à porta dos lábios, é o prazer do outro.

Este céu não é de hoje...

18 agosto 2007

O nariz é romano,
Pendular e obtuso.

Os cabelos são anéis
doirados de um céu grego,

A voz… a voz é calma
E celeste, marinha.

A pele dos ombros
Queimou-a o sol da antiga
Babilónia.

E tu tens uma boca,
Um lírio no lugar dos teus lábios.