27 novembro 2006

Hoje

Sabes, eu não pensei
que o frio te invadisse os
ossos, te deixasse assim gelada,
os lábios roxos, as mãos
tremendo, eu não sabia
que as lágrimas não
parariam de correr,
e que ao fim de um dia
formassem um rio tão cheio.

Lembra-te desse dia
em que não fomos nós,
não estivemos sós,
e sorri, porque hoje somos
dois.
Para sempre.

16 novembro 2006

Dizem que o mundo só anda tendo à frente um capataz

"Os Índios da Meia Praia"

Aldeia da Meia Praia
Ali mesmo ao pé de Lagos
Vou fazer-te uma cantiga
Da melhor que sei e faco

De Montegordo vieram
Alguns por seu próprio pé
Um chegou de bicicleta
Outro foi de marcha à ré

Quando os teus olhos tropecam
No voo de uma gaivota
Em vez de peixe ve pecas de oiro
Caindo na lota

Quem aqui vier morar
Nao traga mesa nem cama
Com sete palmos de terra
Se constrói uma cabana

Tu trabalhas todo o ano
Na lota deixam-te nudo
Chupam-te até ao tutano
Levam-te o couro cabeludo

Quem dera que a gente tenha
De Agostinho a valentia
Para alimentar a sanha
De esganar a burguesia

Adeus disse a Montegordo
Nada o prende ao mal passado
Mas nada o prende ao presente
Se só ele é o enganado

Oito mil horas contadas
Laboraram a preceito
Até que veio o primeiro
Documento autenticado

Eram mulheres e criancas
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
quem diz o contrario é tolo

E se a ma lingua nao cessa
Eu daqui vivo nao saia
Pois nada apaga a nobreza
Dos indios da Meia-Praia

Foi sempre tua figura
Tubarao de mil aparas
Deixas tudo à dependura
Quando na presa reparas

Das eleicões acabadas
Do resultado previsto
Saiu o que tendes visto
Muitas obras embargadas

Mas nao por vontade própria
Porque a luta continua
Pois é dele a sua história
E o povo saiu à rua

Mandadores de alta financa
Fazem tudo andar para tras
Dizem que o mundo só anda
Tendo à frente um capataz

Eram mulheres e criancas
Cada um com o seu tijolo
Isto aqui era uma orquestra
Que diz o contrario é tolo

E toca de papelada
No vaivém dos ministérios
Mas hao-de fugir aos berros
Inda a banda vai na estrada

Letra e Música: Zeca Afonso

14 novembro 2006

Acordar

Nos meus versos

a flor que na palavra nasce
junto a um raio de sol,
beijo indelével,
és tu...

Mar II

Olha o mar;
entra nele,
como se fundo entrasses
no meu pescoço.
Respira; as mãos presas
por um segundo, abre
a tua pele à pele do sol.

Dorme; não digas azul,
diz branco, atira o sorriso
à noite, como se o mundo fosse de mar.

10 novembro 2006

É no Outono. E se dizemos que estamos no Outono é porque chegámos enfim a outros dias, Aqueles feitos de ar quente e cheios de sol já os deixámos, já nos esqueceram, quer dizer, voltarão apenas quando quiserem, talvez para o ano que virá a seguir a este. O tempo, esse que não sabemos quem seja mas que deixamos que nos leve onde quer, encarregou-se de tal façanha. É no Outono. A luz é outra, o sol não nos queima já a vista, e menos nos queima a pele. O cheiro que traz o Outono é outro, constatamos, é assim quando saímos à rua a primeira vez depois do Verão. É esse cheiro que trazes, e é com esta luz que te espero, Chegarás com ela, é o que te digo em tons de Outono, Espero por ti quando forem as primeiras chuvas, é o que te conto em tons de segredo, não te vás assustar, ou com a chuva ou com esta quebra de silêncio, mas ao dizermos a palavra silêncio estamos a mentir, não somos verdadeiros, se chove por aqui não pode fazer-se silêncio. E com isto mentimos outra vez, não conseguimos ser verdadeiros nesta história que contamos, pois se chove o silêncio cresce, faz-se mais alto, preenche todo o espaço que há entre os meus lábios e o teus, e quanto mais forte cai a chuva mais forte é o silêncio que fazemos, entre nós não há palavras onde não são precisas, porque agora é preciso ouvirmos a chuva. No silêncio não há perguntas absurdas que resistam, ficamos calados e ponto, final ou de admiração não importa, já o dissemos, calemo-nos os dois. É no Outono. E se aqui nos repetimos, e não vamos conseguir deixar de o fazer, é porque gostamos de aqui estar, eu e tu, esperando que a chuva torne a molhar-nos, e deixe vir o silêncio, já nada importa, falar, escrever, eu fui, eu parti e encontrei-te, o silêncio que regresse de vez e acabe com esses últimos dias que queimam a pele e os olhos, uma vez que eles nos deixaram já há semanas atrás. Dormimos, não dormimos, não queremos sair daqui, aqui ficamos, deixar este lugar de Outono não nos passa pela cabeça, que é o mesmo que dizer, não pensamos nisso, agora que te tenho de novo não quero sair, quero ficar, tu e eu.

Estes dias de que falamos tão demoradamente, estes a que chegámos, são em tudo diferentes dos outros que partiram, esses amanheciam, estes entardecem à beira de uma folha caída, entardecem a uma luz morena, de cabelos escuros e lábios finos, e não sabemos já se falamos de ti, aqui ao lado, de ombros nus, queimados ainda, ou desta luz de Outono, ou se de uma e a mesma coisa. Era aqui que eu gostava de adormecer, nestes dias de menos sol, Lembras-te, durante quatrocentos anos sonhei com manhãs no mar, com o vento salgado nos olhos. Tu sorris, tão bom ver-te sorrir de novo, tantas saudades, meu amor, tantas saudades, mas agora estás aqui, e eu vou ouvindo o trabalho do Outono, quase que consigo ouvir as folhas lá fora, o vento e a chuva, que este mês não acabe nunca para nós.

Esta luz, contamos, extingue-se num fogo lento de lenha, por isso dizemos que no Outono chega outro cheiro, e chegam outros dias, vindos de qualquer parte que não conhecemos mas que fica muito longe, e assim fica explicado o que queria e tu querias dizer mas não pudemos ou não quisemos porque fazíamos silêncio com os nossos lábios, porque ouvíamos a chuva, porque era Outono, porque tu voltaste depois de partires quando o Verão terminou… E porque outras areias chegam com as marés vivas de Outubro, com estas novas ondas de um mar puríssimo, dourado, que é o mesmo que dizer, Com este mar de Outubro.