15 outubro 2010

David

Sempre chegamos onde nos esperam, correntes, mas verdadeiras, as palavras, sempre chegamos ao lugar que nos reclama, inteiros, de corpo presente, não importa o caminho, para onde quer que vamos pelas estradas perfilam-se os cedros, que contemplam a respiração, os ombros frios e azuis, um cabelo, as mãos, que é tudo isto senão apenas uma dobra no espaço, um lugar no tempo, o estar aqui, agora, o estar ali, depois, para tudo isto foi preciso dobrar o espaço e o tempo, o nosso, o teu, que importa tudo isso também, esqueçam-se os pronomes da posse que não temos, o tempo pertence ao lugar onde estamos, e porque nele somos inteiros, respiramos o ar que nos oferece, para onde irresistivelmente caminhamos. Sempre chegamos aos lugares que nos esperam, que é outra maneira de dizer, Nunca estamos onde pertencemos, dobra no espaço, curva numa linha, mãos e ombros frios olhando debaixo os pardos cedros que nos contemplam, os que vivem não podem viver de outra forma, é aceitar as regras e jogar o jogo, tamanhas concessões, por mais atrozes que pareçam, são a própria existência, joguemos todos esse jogo, os que vivem assim terão de fazer.

Só David não vive desta maneira, ele que no absoluto silêncio aprendeu a sorrir respeitando o verdadeiro e único seu modo de existir, só David respira, vê, sente invadirem-se os olhos de repente, poderiam ser as cheias do Nilo, as águas do Ganges, o largo mar do Amazonas sem margem que se conheça, mas são apenas olhos inundados de lágrimas, apenas lágrimas que caem aos pés de quem o descobre no fundo da sala, de quem não esperava ter de viver para ver o que em comuns palavras escusa de ser dito, a beleza indeclinável, impossível, as mãos que apaixonadamente o criaram, onde estão, só David não vive como os que demais vivem, mesmo vendo caírem as lágrimas, as suas, no chão, sós, só David vive entre nós a sua existência excepcional de estátua, nunca deixou o lugar onde pertence, onde o esperam, ele não terá de fazer essa viagem que torna todos os homens infelizes, primeiro, e depois desaparecer, dobra no espaço, mãos e ombros frios, azuis, mediterrânicos. David completou a sua existência mesmo antes de ser estátua, antes mesmo de sentir que, afinal, são lágrimas aquilo que chora com quem, descobrindo-o ao fundo da sala, sente fugir-lhe os pés quando vem conhecer o homem mais feliz da terra.